segunda-feira, abril 12, 2010

Vida

"Não tenho filhos e tremo só de pensar. Os exemplos que vejo em volta não aconselham temeridades. Hordas de amigos constituem as respectivas proles e, apesar da benesse, não levam vidas descansadas. Pelo contrário: estão invariavelmente mergulhados numa angústia e numa ansiedade de contornos particularmente patológicos. Percebo porquê. Há cem ou duzentos anos, a vida dependia do berço, da posição social e da fortuna familiar.
Hoje, não. A criança nasce, não numa família mas numa pista de atletismo, com as barreiras da praxe: jardim-escola aos três, natação aos quatro, lições de piano aos cinco, escola aos seis, e um exército de professores, explicadores, educadores e psicólogos, como se a criança fosse um potro de competição.
Eis a ideologia criminosa que se instalou definitivamente nas sociedades modernas: a vida não é para ser vivida - mas construída com sucessos pessoais e profissionais, uns atrás dos outros, em progressão geométrica para o infinito. É preciso o emprego de sonho, a casa de sonho, o maridinho de sonho, os amigos de sonho, as férias de sonho, os restaurantes de sonho.
Não admira que, até 2020, um terço da população mundial esteja a mamar forte no Prozac. É a velha história da cenoura e do burro: quanto mais temos, mais queremos. Quanto mais queremos, mais desesperamos. A meritocracia gera uma insatisfação insaciável que acabará por arrasar o mais leve traço de humanidade. O que não deixa de ser uma lástima.
Se as pessoas voltassem a ler os clássicos, sobretudo Montaigne, saberiam que o fim último da vida não é a excelência, mas sim a felicidade!"

João Pereira Coutinho, Jornalista

2 comentários:

Lina Barata disse...

Já conhecia este texto mas valeu a pena ler outra vez. Faz algum sentido, embora, curiosamente, à semelhança do que já tinha acontecido fiquei, uma vez mais, com a sensação de que do mesmo brota alguma nostalgia do autor. Se o progresso das sociedades não for pela meritocracia, não é regredir? voltará a pesar mais o seio onde se nasce? Famílias como as Pereira Coutinho continuarão sempre na proa. Eu sei que esta última frase parece conter algum revanchismo próprio de uma esquerda mais radical, mas vejamos: as classes sociais sempre existiram e continuarão a existir. Se as que têm mais poder continuam a esforçar-se por o manter, não têm as outras legitimidade para o procurar?
Parece que estou a fugir ao assunto do texto cujo objectivo é condenar os excessos de actividades a que são acometidos as nossas crianças hoje em dia. Crianças estas, principalmente os filhos dos mais humildes que dantes cresciam livremente (?) será? quantos não trabalhavam desde cedo? quantos não tinham "inveja" de não poderem aceder a muitas actividades e conhecimentos que os mais afortunados tinham? As classes mais afortunadas sempre possibilitaram (impuseram) aos seus filhos a musica, desporto, o conhecimento de línguas, etc, etc.
O que acontece hoje em dia é que muitos pais procuram que os seus filhos tenham acesso a tudo o que têm direito(?). Isto tem gerados os erros que todos conhecemos e leva às insatisfações de que fala o J. Pereira Coutinho. Visto assim temos de dar-lhe razão. Mas não me parece assunto que possa ser abordado assim com esta ligeireza mental. Há excessos que, como em tudo, tiram qualidade, mas eles são próprios das mudanças e não me parece que o melhor caminho seja arredar caminho. Ora aqui está um assunto para ser tratado por si com outra profundidade.

Geraldo Brito (Dado) disse...

O mal do ser humano: quanto mais tem mais quer... Parabéns pelo blog!